quinta-feira, janeiro 26, 2012

Criolo e Jung

Socorro - São Paulo, 1980.
Um garotinho de cinco anos olhava a janela do ônibus e via com seu espanto infantil - portanto, puro - e interiorano um mar de blocos, tijolos, tábuas, papelão, telhas, terra. Mas o que ele percebia com mais intensidade eram as pessoas, as pessoas, as pessoas. Queria imaginar, o quanto permitisse a velocidade do ônibus, o que aquelas pessoas queriam, sentiam, sonhavam. Sua mãe simplificou dizendo o nome daquilo tudo: favela. 
Grande São Paulo, 2012.
Um cara barbado olha no relógio quanto tempo tem (37 anos não cabem no mostrador de seu relógio) para dizer o que quer, antes de ir pra Capital. Ele olha pela janela de seu carro o mesmo mar, com o olhar carregado de ideias, conceitos e preconceitos, de pensamentos próprios e alheios, teorias, profundidades e superficialidades. 
De igual, talvez o DNA que permite produzir as células, provavelmente todas as de 1980 já se fueron. E, também, a favela. Muitas daquelas pessoas morreram, casaram-se, mudaram, choraram, outras tantas vieram, nasceram, casaram-se, mudaram. 
Algo persiste.



Acordou  tarde. Pôs mais tarde. E mais. Deu-se o direito de descansar naquela noite-manhã. Recusou-se a prometer que jamais jogaria sinuca até tarde. Apenas constatou que naquele momento ele não queria jogar sinuca. Constatou, porém que ele tinha vários momentos e jamais teria controle sobre sua vontade em todos eles. Entrou na rede com o objetivo de ver as publicações diárias. E surfou aqui e ali, até que chegou em Jung:

Reporter: “...and did you believe in God?”
Carl Gustav Jung: “Oh, yes!”
R: “And now, do you believe in God?”
CGJ: “Now? (pause) Difficult to answer... I know (smile). I don’t need to believe. I know”.

Acendeu uma vela no centro da sala, para seu guardião encaminhar a sua emoção a Jesus Cristo. 
Lembrou-se da simplicidade aprendida a caminho de Compostela. Naquele descanso, tinha descanso e precisava de alimentos. Prestou atenção em cada fruta que lavava, espremia, descascava, tirava caroços. Apreciou um de seus 100 pequeníssimos prazeres: ver as frutas liquidificarem-se e fundirem-se aos grãos que despejou. Sorveu o produto.
Andara meses antes por 150 km com apenas 7 kg de instrumentos necessários às costas. Hipocrisia esquecer que possuía um cartonete que o interligava a um sistema bancário internacional, porém burrice não perceber que poderia, sim, desprezar o cartonete e se virar.
E é aqui que, curiosamente, quis chegar.
Alimentado, ligou o rádio uol. Acordou com a intenção de ouvir Criolo. E começou a pensar: uma vela arde no centro de uma sala de uma casa-subsolo de outra casa num bairro periférico em relação ao centro de uma pequena cidade pertencente à região metropolitana de São Paulo. No dia anterior, ele terminou seu serviço da repartição. Foi ao carro, tirou gravata e paletó, sapatos sociais e vestiu sua bota de caminhada. Cumpriu o percurso de 3 minutos em 27 deles. Pos bermuda e camiseta, voltou pra pegar o carro de bike. Bike no carro, voltou comumente. Reparou, durante o caminho, em cada casinha, fundação, mato, ausência de calçada, barraco, entulho, planta, comércio e capelinha. E principalmente as pessoas. Ali não era o interior no qual cresceu e com o qual se acostumou. As pessoas não cumprimentam o desconhecido, ainda mais se o desconhecido vestia calça risca de giz, camisa social e bota de caminhada, a estranheza personificada. Reparou nas similaridades entre aquele caminho e o famoso, de Compostela. 
Criolo é um músico de rap, hip hop, de um monte de ritmos, que exalta a origem e não se deslumbra com o incenso sobre ele jogado pela grande mídia. A impressão que dá é a da plena consciência de tudo o que acontece. De tudo, principalmente o incenso que ignora o que lhe é realmente caro, as pessoas do bairro periférico em relação ao Centro de São Paulo chamado Grajaú. A mesma periferia, dado o centro comum.
Não existem paralelos entre o sujeito do post e Criolo, na exata medida em que não existe amor em SP.
(susto, começou a tocar exatamente no momento do ponto final do parágrafo anterior).
(É óbvio que existem paralelos e amor, mas se explicar, a piada perde a graça, já se disse).
Unem-se Criolo e Jung num post chuvoso.
Na mesma entrevista da qual se extraiu o texto acima, Jung conta o seu primeiro contato com seu "self". Ele estava no caminho para sua escola, com onze anos de idade, quando se sentiu saído de uma névoa. E então ele constatou: eu sou. Eu sou o que eu sou. E se perguntou: o que eu era antes? Antes, estava numa névoa. Antes, não se diferenciava das outras coisas, era apenas uma coisa dentre tantas outras coisas. Não existe amor em SP.
Uma das primeiras lembranças do sujeito do post é quando vinha de Socorro para São Paulo e da janelinha do lado esquerdo do ônibus, via aquelas casinhas todas, unidas, um mar de blocos e tijolos e telhas brasilit. Não sabia o que era brasilit, com cinco anos. Também não tinha consciência do seu self. Mas ia as outras crianças desconhecidas soltando pipa, via a vida ocorrendo e lhe dava um negócio bom. 
A vela arde no meio de uma sala que não deixa de ser o ônibus do qual ele vê a vida. E a janela da sala é janela mesmo, embora através dela ele só veja uma casa desalugada, nada mais; se quiser ver o tucano que vem coaxar no poste tem que ser mais cedo e de pé, na porta. 
Ele vive romântica e comodamente nessa casa. E seus tempos byronianos duraram o exato tempo de ter lido de verdade um texto de byron. O que ele quer é realidade. 
Criolo oferece a realidade que o sujeito entrevê da janela dos seus ônibus. Há um verso de grajauex: "No advogado é rolex". Ele é esse, embora com seu chilli beans, que é presença e baratinho, ele sente as músicas de Criolo com como um uppercut no queixo. É o incômodo que precede o movimento.
Decidiu ser este o fim do post. 

terça-feira, janeiro 24, 2012

Sabe você que infinitas são as metáforas para o lado esquerdo do trem, não é?
Pois bem.
Quem não é versado no metrô paulistano, no início havia apenas um cruzamento de duas linhas, onde se faz uma das minhas palavras (não atos) preferidas, a baldeação.
Trata-se da Estação Sé. Na sua aproximação, a voz de um locutor recém-largado pela namorada, preterido por alguém mais empolgado diz: estação (pausa dramática) Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.
Ainda moleque atibaiense, eu gostava imotivadamente dessa expressão. Devo ter escrito algo a respeito em alguns de meus CMUs. 
O lado esquerdo do trem pode ser uma opção de saída. Uma solução. O lado, em si, indica possibilidade. Esquerdo, segundo me lembro nos tempos da revolução francesa, era o lado ocupado no plenário pelos inicialmente mais legais, jacobinos se não me engano. Gostava dos Jacobinos, antes de enlouquecerem pro mal.
Porque gosto dos louquinhos do bem, especialmente os louquinhos de praça. Adão, Seo Zé, Magal, Toniquinha, Vovozinha e tantos outros. Volta.  
O trem, em si, pode ser... o que você quiser. E daí a miríade de metáforas. 
Meu weblog chama-se O Lado Esquerdo do Trem. 
Não é um nome comercial. Nem tão sonoro assim. Mas é o melhor nome que eu podia ter escolhido. 
A ideia de movimento; de destinação; de viagem; de alteração; de baldeação!; de interregno; de velocidade; de coletividade; de compartilhamento; de provisoriedade, tudo isso me é caro.
Meu weblog é um meio-caminho entre o mundo offline, onde está toda a poesia, e o online, onde está todo o devir. 
Qualquer dia alguém me diagnostica o vício pela internet. Com CID e tudo, com passo-a-passo pra largar.
Meus textos dançam melhor no espacinho destinado à sua criação, cedido pelo blogspot, do que no árido word. 
Árido wooord. Árida childreeen. Volta.
Meus textos dançam melhor porque é como se estivesse sentado na beiradinha da Pedra do Disco, em STL; perto da pedra partida da Pedra Grande; nas ruínas da torre da televisão da BelaVista; do Boldró de Fernando de Noronha, deliciosa adaptação de Bald Rock; no trampolim da Chapada dos Guimarães de 1997, minha fotinho de filme revelado. Meus textos dançam melhor na iminência.
So do I, so do I. Volta.
Enquanto estou no blog, ouvindo Notorious B.I.G., tenho a segurança de estar sentado na minha poltrona de braços e rodinhas e não num holograma de penhasco no qual uso roupas futuras que me permitem o voo. 
Estou na iminência. 
E hoje o que quero é isso. É escrever o que comecei enquanto comia a lasanha. Lavar o prato, arrumar algumas coisas, ler meu livro, dormir o que não dormi noite passada, por jogar sinuca online até às 5 horas da manhã. 
Carta a quinze amigos. 
O trem tem um sofisticado sistema de segurança, mas não quebre o vidro nem puxe a cordinha em vão.
Chove sim, chuva. Mas não faça mal a ninguém, por favor.
Ultreya!


quarta-feira, janeiro 04, 2012

Acabo de ler uma bobagem sobre um suposto paralelo entre gerações de jovens a cada duas décadas. 
Ouço Lavoura. 
Sinto meus lábios apertados e curvados para baixo, o cenho franzido. 
Um cachorro late longe. 
Eu moro numa casa que fica abaixo de outra, num bairro periférico de um município da Grande São Paulo.
Uma sensação ruim me deu agora. 
Como se isso fosse deixar de ser provisório. 
Na parede acima da tela do note amontoam-se fotos da minha mulher, do meu pai, da minha afilhada. 
Mais acima,um post-it datado de 21.4.11 exclama Continua
Havia um mapa da Galícia, mas sumiu. 
Minha faxineira não quer trabalhar mais aqui, ou então é falta de jeito ao escrever quando pediu o desmedido aumento. 
Não lembro da cara dela, comunicamo-nos por bilhetes há meses. 
Ela tem uma tatuagem no dorso da mão e me desejou feliz ano-novo, hesitante, já depois de ter deixado, sabendo que eu não o sabia, o bilhete-despedida sobre minha mesa, numa aparente contradição com a "Obs: lista de compras sabão em pó amaciante paninho p/ pia desinfetante". 
Se fossem outras espécies de diálogos, eu interpretaria como a desvontade de deixar de trabalhar aqui em casa. 
Mas os outros diálogos foram (compreensivelmente) cortados, tal como Toríbio Terra Cambará faria-o com as linhas de telégrafo, não fosse (compreensivelmente) impedido pelo Cel. Barbalho, Comandante da Guarnição Federal de Santa Fé. 
O cachorro insiste em latir e essa angústia travestida de pônei maldito no meu estômago me insinua, provocativa, sussurrante e lânguida: e se isso se tornar teu permanente, teu definitivo, o que farás?
Sou capaz de em três breves textos romantizar tudo isso que me cerca a ponto de parecer atrativo. 
Manezinho, não lês essas linhas, mas se as lesse, te digo que gostaria de um dia conversar contigo uma conversa de alma. 
Eu teria de me embriagar e te perguntar por que cargas d'água vc me parece tão triste às vezes, mesmo quando faz piada? 
E te dizer em seguida, meu amigo, que ando seguindo igual. 
Faltam quinze minutos para uma hora da manhã e minhas promessas foram quase inteiramente descumpridas nesse dia, não fosse a heróica vitamina de frutas. 
Pai, nos protege nos próximos dias. 
Eu já recebi o sinal de que vc está atento e vigilante. 
Sinto que tudo estará bem, mas não vou comentar sobre o que fiquei inesperadamente sabendo essa noite, para não alarmar os outros. 
Ou talvez conte, apenas para ela. 
Meus lábios não estão mais apertados, mas ainda curvam-se para baixo. 
Até da promessa de manter os ternos passados vejo pelo tecido amarrotado aqui ao lado o seu descumprimento. 
Manezinho, triste ou não, vc e seus comparsas fazem umas músicas bem boas. 
Desdigo sempre tudo o que prego sobre o Agora, esse é o fato mais cabal. 
E descubro: sim. Identifico a angustieta-pônei-maldita como um pinçar de mim mesmo no espaço, como se dois dos descomunais dedos de Deus distanciasse, reduzindo-a, a imagem de uma universalizante tela touchscreen, dum google earth planetário qualquer e de repente eu pudesse ver lá de cima onde estou, em relação ao espaço por mim conhecido. Este pontículo periférico-metropolitano e Deus então sincronizaria um aplicativo que permitisse isolar esta noite quente e vagarosa do trigésimo sétimo janeiro e, adiante de mim eu nada visse senão esse abismo.

domingo, janeiro 01, 2012

10 dias


Dez dias me separam do meu reveillon particular. Já há alguns anos é assim: aproveito a vibe da celebração universal pra preparar a pessoal. São meus dez dias de colorido - ou tonalidades de cinza - diferente. Geralmente ganham luz as wishlists. As resoluções, as orações de são jorge na camiseta (surrupiadas por certo weblog), as lentilhas e os caroços de romã na carteira. 
Esse ano é assim: plano plurianual. Daqui a 10 dias restarão 3 para os meus quarenta anos. Virei tiozinho, de buenacho. E minha resolução é uma só: vou reinventar o meu tesão pelo Direito. Vou tentar de todos os jeitos, vou ser tenaz. Lerei sobre licenciamento ambiental, lei do audiovisual, direito tecnológico, administração legal, PPPs, direito esportivo, direito autoral, direito internacional, direito tra-ba-lhis-ta, direito dos fiapos do rabo do bezerro. Muito provavelmente esse garimpo venha acompanhado de alguma iniciativa empreendedora, dos muitos projetos que não vou escrever aqui, pra não dar zica. Se daqui a exatos 3 anos e 10 dias eu não sentir tesão, eu largo o meu ganha-pão e vou ser falado mal por todos pro resto da vida. Isso é uma decisão irrevogável. 03 anos é um prazo razoável, é meia faculdade, é um mestrado idealizado. Daqui a 3 anos ou eu sou feliz de verdade, essencialmente feliz, com todos os momentos de infelicidade inerentes ao cotidiano (não se permitem certos tipos de idealismo a pessoas com 37 ou 40 anos) ou eu vou, sim, criar  os meus cabritos montanheses. Se nesse meio-tempo eu vier a ter algum filho, esse plano vai ficar dramático, mas essa é uma decisão irrevogável. Meu filho tem, pois, grandes chances de ter o pai loucão que servirá de inspiração pra sua felicidade.