sexta-feira, agosto 24, 2012


Transitou em julgado. Eba. Parabéns, essa foi linda... salvo engano uma das peças vc me deu as diretrizes quando vc já estava internado. Colaborei, sim, mas depois do que vc fez ficou fácil. É bem um símbolo de todo o resto. Vc trilha o caminho, depois fica fácil. E agora vc tá vendo tudo daí, o que eu ando fazendo aqui. Tua visão tá bem ampla, sabe das coisas que todos nós esquecemos. Entende muitos motivos que não me entram não me entram não me entram na cabeça. Mas aprendi isso, sabe, que tem que seguir. Largando cada vez mais os por quês de mão, pra ficar com os para quês. Tenho uma ideia mal-formada, sabe? De que o tempo/passado/futuro não existe. Lembro daquela conversa esquisita que tivemos na sala, diz aí, eu tava meio desviando a rota e vc resolveu sondar o que se passava comigo. Vc começou a falar algo da filosofia hegeliana, acho até que foi numa das vezes que falou da tal espiral, e eu expus minha teoria amalucada de que o tempo é como uma folha de papel em que vc une duas pontas opostas, começa de uma ponta, vai se expandindo, cada vez mais complexo, cada vez mais elaborado – e a gente pode imaginar o caminho da ponta da folha até a metade dela, até que quando passa da metade, vai tudo se simplificando, se sintetizando, se unificando, até chegar ao mesmo ponto, unido ao ponto inicial, pra começar tudo de novo, como uma descomunal respiração, num movimento de onda e, sim, espiral. Lembro um pouco da cara que vc fez, falando que não tinha sentido, voltou pro Hegel e eu passei alguns anos preocupado com sentidos rs. Mas diz aí, vc tava só sondando pra ver se eu não fumava maconha ou algo assim, tava no seu papel. O dia em que meu filho não nascido for adolescente eu também vou ter essas conversas. O que eu queria dizer e talvez não tenha me expressado bem é que a minha filosofia de botequim era muito parecida com que o Hegel dizia, só me faltava a erudição. Que falta que vc faz. Em todos os sentidos. Quantas conversas eu precisava ter com vc. Mas a vida é assim, como dizia o Nasi entre os acordes do Scandurra: “se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho”. E como filho eu vejo vc, pai, onde estiver, te vejo como um cara como eu, com toda a clareza que só quem chega aí readquire. Eu sigo batendo a cabeça, fazendo burradas, mas seguindo o que tenho que seguir. E vou inventando acordes pra assobiar na estrada, talvez eu tenha habilidade pra colocá-los em cordas tensionadas um dia. Meus rumos vão mudando, eu saio pelo lado esquerdo do trem e tomo outras direções, espero em outras estações outros trens que virão. Eu tive que me separar de algumas lindas certezas e pisar no escuro úmido e frio. Alguns comprimidos a mais, uns tantos conceitos a menos, uns objetivos dobrados em barcos de papel navegando outras enxurradas, vou aprendendo a diferença entre desistir e mudar a rota. E a vida fica tão mais plástica, mais nítida, embora ainda resvale em umas quebradas oblíquas. Mas como eu sinto tua falta, vc bem sabe. Aqui a mãe está bem, começou a se cuidar mais, nos dá todo o apoio. Continua te amando como sempre. Fala as passagens que vcs viveram quarenta anos atrás como se tivesse sido a semana passada. Não fui capaz de ser pra Ale o que vc foi pra mãe, no fundo em resumo é isso o que eu acho. Toca o barco. As coisas de socorro vão caminhando. Engraçado eu me dar conta de que estou insone escrevendo e à minha esquerda tocam alguns rocks desconhecidos de vinte anos depois dos rocks que eu ouvia quando vc teve aquela conversa comigo. Se eu olho um pouco pra baixo entre as duas abas da camisa desabotoada eu vejo a barriga que não tinha naquela época. Minhas mãos estão mais cheias, cada dia mais parecidas com a tua, vivo repetindo, ta chato já. Estou numa casa e – que estranho, eu olho pra todos os lados e vejo objetos e aparelhos e violões e coisas assim que fui comprando esses anos. Por que tudo isso – e até isso, me causa estranheza? Falta alguém aqui comigo, sabe? Talvez seja só isso. O Di está bem também, continuamos naquela distanciazinha atenciosa mútua, nos gostamos muito, mas respeitamos os espaços que tontamente impusemos entre nós. A Naninha ta muito bem, o Guilherme é ponta firme, vcs iam conversar muito sobre tudo, eles vão seguir felizes. E é isso, pai, hoje não choro mais quando escrevo essas cartas pra vc, mas continua não havendo um só dia em que não pense em vc. Um só dia. Vc sabe. Todas nossas ações vão transitando em julgado, brinco que quando vc se foi vc deve estar inspirando os desembargadores, vc ganhou praticamente todas. Estou aprendendo dura e constantemente a ter mais confiança, a ter um pouco daquela confiança que vc tinha. Ganha relevo uma vez mais a imagem só contada – mas tão recontada que praticamente vejo – vc chegando na enchente, de shorts e sem camisa, tendo acabado de perder tudo o que tinha, pra pedir a mão da mãe em casamento. E todos contam que vc nem ficou triste com a perda. Se vc não tivesse deixado nada pra gente, só essa história real, já daria pra gente tomar todas as atitudes que viessem a se fazer necessárias. É por isso que, decida eu o que decidir, eu sei que no final vai ficar tudo bem, por mais percalços que eu mesmo gere. Esses rocks são bem bons, sabe? A MTV segue sendo melhor de madrugada, sem aquelas bobagens diurnas. E isso que eu to sentindo agora? Essa presença? Essa coisa boa? Esse insight? Essa vontade de comer a vida? De que as estradas sejam engolidas pelo carro que eu dirijo? Uma mão cristalina daí do alto com seu indicador de luz tocando o capô do meu carro, respeitando os movimentos quase imperceptíveis dos meus braços na direção, enquanto tocam os mesmos rocks de sempre da MTV? O é isso, senão vc? Seja como for? Só lembrança, vc mesmo, teu DNA transmitido correndo cada célula? O que são esses acordes dessa banda desconhecida, cujo nome vou pegar ao final do clip e baixar todos os dois ou três álbuns que certamente terão gravado? O que é essa sensação de paz e essa vontade de [universo paralelo]? Some Community é o nome da banda. Transitou em julgado. Cumpra-se o venerando acórdão. Te amo. 

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eu não sei se é o amor, ou porque são os textos que, certamente (não julgue minhas crenças) ele lê, mas teus melhores escritos são aqueles que fazes pro teu pai. :)

9:01 AM  
Anonymous Anônimo said...

Tinha esquecido como tu escreves maravilhosamente, especialmente pro teu pai...muito lindo, dificel de ser analisado!!
Bjo
A da boina..

11:51 PM  

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