quinta-feira, maio 24, 2012


Duzentos e dez, duzentos e vinte, duzentos e trinta; certo? Certinho. Então muito obrigado. Obrigada a você, boa viagem. Obrigado. Ah, será que a senhora podia me explicar rapidinho como ele funciona? Claro: você gira aqui, aperta esse pino, acerta com esse aqui e é só esperar. Ele é muito preciso. Ótimo, tenho certeza de que ele vai gostar; tchau!
Ligou o carro. Não telefonaria a ninguém, ele necessitava de mais estrada; logo. Poucas horas antes, num dos piores momentos de sua vida, impedira o choro com um sorriso fake e assuntos jorrados contínua e aleatoriamente, como as músicas que agora se seguiam ecoando altas com os vidros fechados. Identificou o desconforto adicional pelo suor da testa e abriu logo os quatro. 
Cuco.
Não podia ser mais insólito o dia. Malditos pensamentos figurados, ele não se desvencilhava da sensação de que autografava o fracasso de uma vida e o sofrimento da pessoa mais amável que o mundo pudesse lhe oferecer.
Tentou canalizar o ódio que sentia para a plaqueta do escrivão: Paulo Vinicius Peretti. Não se odeia uma placa, por mais riscada e apagada esteja. Tentou odiar a gordura escorrida para os flancos do escrivão; suas piadas infelizes, suas frases prontas, o cabelo penteado do escrivão Peretti, a aliança que ostentava no anular esquerdo, aquilo já era demais; ergueu-se e, para terror dos presentes, arrancou do escrivão Peretti a aliança e o anular esquerdo, que fez o escrivão engolir, antes de morrer asfixiado e transformado em pó, desfazendo-se o feitiço, pó viraram a caneta oferecida, mesa, cartório e, sobretudo, a escritura pública onde se lavrara o fracasso de uma vida e o sofrimento da pessoa mais amável que conhecera até então.
Cuco.
Mas não. Paulo Vinicius moveu suas gorduras laterais ao rir, apenas ele, de sua pequena piada. Recolheu a caneta, bateu duas vezes os cheques do ITBI e emolumentos no tampo de vidro, sinalizando que tudo acabara ali. O ato oficial, os planos, os sonhos, a comunhão. Saíram esforçando-se por parecerem fortes, despediram-se com um beijo no rosto, mal cruzando os olhares. Um beijo no rosto. Sabia que exagerava, que não era o fracasso de uma vida, foram felizes pelo tempo que durou, houve muito companheirismo, carinho, cumplicidade, amor, inegável tudo o que vivenciaram juntos. O sofrimento era de ambos, sem culpas, sem brigas, era, afinal, passageiro. Desejaram com sinceridade bons votos, prometeram contato, amizade. Cada um seguiu um sentido na calçada ensolarada e o que se passou então não pode ser escrito.
Cuco.
Nada naquele dia seria capaz de fazer o menor sentido. Constatado isto, perfeitamente plausível o acréscimo de 200 km desviados em rodovia unicamente para buscar uma encomenda para um bom amigo.
Um cuco.
Teve medo de enlouquecer de sofrimento. Um reflexo de sol no vidro do carro à frente colaborou para lembrar-lhe de que jamais ouvira falar de loucura por sofrimento. Enlouquece-se por vários motivos, claro, vários outros motivos, não era psiquiatra, realmente não poderia afirmar com certeza. Mas por sofrimento ninguém enlouquece, apenas se continua a sofrer, até parar e voltar a ser um pão amanhecido de padaria mal frequentada com pitadas de linguiça calabresa, de tempos em... cuco.
Conversava agora com um cuco disposto cuidadosamente no centro do banco de passageiros e seu medo de loucura aumentou. O cuco – e não o sofrimento – era passageiro e, por sorte, apenas e tão-somente lhe respondia, ainda... cuco.
Cento e trinta, cento e quarenta, cento e cinqüenta; certo? Certinho. Não, fracasso não se lavra em cartório; cuco não conversa; não se é um pão amanhecido, apenas se parece com um deles, por vezes; nada fazia sentido e nem por isso se justificava a contagem da aceleração do carro imitando-se a das cédulas com que se comprou o cuco. Sofrimento não enlouquece mas loucura mata. E ele não queria... cuco.
No acostamento, chorou feito um porco encardido, subitamente consciente de que seria assado e almoçado numa quermesse de paróquia de bairro rural.
Ele não queria morrer nem facilitar o processo para tal. Dirigiria cuidadosamente, ouvindo as músicas aleatórias, acompanhado de um cuco que nem seu era, enquanto as esperanças caíam e alteravam a luminosidade que abraçava todos os entes sólidos do mundo, ao menos os que podia enxergar na rodovia.
Fugiria com o cuco rumo ao oeste paulista. Sabia não haver lugar no mundo para seu descanso, por enquanto. Iria ainda assim.
Horas depois, abraçou seu terno com o braço esquerdo e o cuco com o direito, empurrou a porta com o pé e ativou o alarme com os lábios.
Um curau; essa esfiha é de quê? Pode ser. Coca. Então água com gás. Dá uma pamonha também pfavor. Por enquanto é só. Tem banheiro?
Esquecera os sapatos sociais. Terno e bota de caminhada. Água na cara, na camisa, na gravata, lágrima, lágrima, lágrima, murro, paciência, só o tempo; encarar separa os homens dos meninos. Abraçou calça jeans e camiseta com a esquerda e a blusa com a direita. Jogou no porta-malas, sentou-se; o luminoso da pamonha sorridente acendeu-se na vitrine; fechou a porta; chave no contato; o cuco, porra!
Cuco, por favor, só me ouve. Hoje está sendo o dia mais estranho da minha vida e o maior culpado disso é você. Não o fato de eu ter ido te buscar; meu amigo merece, ele me deu todas essas músicas aleatórias e gosta muito de cucos. Você não é único, terá vários outros na parede da sala do amigo, em diversos tamanhos, veja por esse lado, não se sentirá jamais sozinho. Morar só não é o fim do mundo; eu mesmo moro só, cuco; o fim do mundo é morar num relógio e conversar com um motorista que só não direciona o ódio para você porque você não é o Peretti; porque não tem nada com isso; porque custou duzentos e trinta reais, cuco, e se um caminhão passasse na tua casa como passou no peito do motorista e deu ré e passou de novo, o amigo do motorista ficaria muito chateado. Não se quer aborrecer mais ninguém nesse mundo, ainda mais se a pessoa em questão for um cara legal.
O dia mais estranho da vida é aquele em que a lavratura de uma triste escritura e o futuro foram intercalados por uma venda e compra de um cuco num bairro afastado da cidade escolhida pra ser minha, ainda que distante.
E teve o fato de o carro haver morrido e eu ser cercado por aqueles traficantes que me tomaram por policial e prepararam meu funeral em pneus enfileirados, quando ao avistar seus anulares esquerdos que ostentavam alianças douradas, arrebentei cordas, chutei pneus, retirei os anulares e enfiei nas respectivas bocas, sem trocadilho, traficante por traficante que, asfixiados, viraram pó, sem trocadilho, pó viraram suas armas, seus sobretudos de matrix, suas maldades, meus erros todos que me conduziram até o ato da escritura de hoje cedo, pó virou... cuco.
Cuco, as luzes da cidade são aquelas, estamos chegando. Você está terminantemente proibido de alcançar a consciência do porco encardido e sair por aí alardeando que fiquei louco por esse tempo.
Segunda-feira volto à cidade onde trabalho, com outros terno e fisionomia, te entrego para seu verdadeiro dono e finjo e finjo e finjo e finjo felicidade, até virar verdade.
Cuco.